quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

QUANDO O SABOR DA VIDA PEGA FOGO!


Demorei para querer escrever sobre PEGANDO FOGO (Burnt), a saga culinária do americano John Welles. Foi preciso assistir ao japonês SABOR DA VIDA para que tudo adquirisse um outro sentido em matéria de sensibilidade, se é que posso definir assim as diferentes emoções provocadas pelos dois filmes.

A receita de BURNT (PEGANDO FOGO)  é manjada. Nos cinco primeiro minutos de projeção já sabemos que se trata de um " filme redenção", uma jornada com pit stop no purgatório para que nosso herói Adam Jones (Bradley Cooper) consiga redimir-se das besteiras e mágoas que espalhou ao longo de sua atormentada trajetória. 

Tenho uma amiga chef, a querida Fernanda Valdivia, e assim que saí do cinema fiz a pergunta óbvia: então é assim mesmo? Tirania e crueldade em potências infinitas? Gordon Ramsay fez escola ou essa hierarquia maluca sempre incorporou a loucura dos chamados estrelados? 

Pois Fernandinha garante que sim, a neura é real.Mais do que deveria ser, segundo ela, mas quem ama e tem tesão pela profissão sabe exatamente o que sente e como vive o perturbado chef Adam. Palavras de chef que ainda vou reproduzir aqui no blog. Aguardem.

SABOR DA VIDA, da diretora Naomi Kawase, também mexe com o paladar. E junto com o sabor aguça a audição, a visão e o discernimento. Uma aula de humildade. 


Delicadeza e respeito estão presentes em todos os diálogos. Tokue (Kirin Kiki), aos 76 anos, domina a arte de preparar uma pasta de feijão azuki inesquecível. Seu chefe, Sentaro (Masatoshi Nagase), tem uma história de vida triste e o sorriso não faz parte de seu dia a dia. Ele vende dorayakis, panquequinhas, recheadas com uma pasta de feijão comprada pronta e sem nenhum brilho. Um quitute razoável, mas bem distante da perfeição.

Só podia mesmo ser um filme japonês, adaptado do romance AN, de Durian Sugekawa, publicado em 2013. A pasta de feijão vermelho doce é conhecida como AN.

O espectador quase sente o cheiro do feijão que cozinha no panelão. E a reverência de Tokue diante do alimento é emocionante porque traz à tona uma devoção, ou paixão, se preferirem, que, martelados pela rotina, muitas vezes deixamos de colocar em prática nas atividades que exercemos. 

Os pequenos detalhes  são importantes. O passar do tempo chega, até nós, pelas cores das árvores, pela presença - ou não - das flores, pelo ritmo dos ventos e pelo calor ou frio das estações do ano. Mas é a lembrança do preconceito que humaniza ainda mais as relações em SABOR DA VIDA. Ignorância que existe e ainda é poderosa em pleno Japão do século 21. 

A descoberta de Sentaro e da adolescente Wakana (Kyara Uchida) transforma a vida de ambos. E nós, espectadores, ficamos morrendo de vontade de conhecer e aprender vários segredos com Tokue. Melodrama? Talvez. Mas principalmente um drama bem humorado e com belas imagens típicas - das cerejeiras em flor às orquídeas que passeiam diante de nossos olhos na telona.

PEGANDO FOGO bem que podia pegar emprestados o respeito e a delicadeza de SABOR DA VIDA. Faria um bem danado ao angustiado Adam Jones. Já Sentaro, o anti-herói de SABOR DA VIDA, seria um homem mais feliz se aprendesse com o personagem de Omar Sy, de PEGANDO FOGO, só um pouquinho sobre o ódio e a arte da vingança.

Pausa para risadas politicamente incorretas.

Pairando acima do bem e do mal, com sua colher de pau, reinaria a senhora Tokue, compreensiva com os apaixonados e impaciente com os conformados. Dos dois filmes.



  
    


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O CLÃ

Entrar na sala de projeção e assistir às primeiras cenas de O CLÃ é comprometer-se com alguns sentimentos desconfortáveis. Revolta e indignação, por exemplo. Você fica pasmo diante de tanta frieza e incrédulo com algumas consequências letais da psicopatia humana. Nada é por acaso. Carinho e manipulação podem estar umbilicalmente interligados. Forever.

Pablo Trapero já disse a que veio faz algum tempo. Em seu mais recente ABUTRES escancarou a máfia dos seguros automotivos. Agora produz um suspense baseado em fatos reais. O caso Puccio escandalizou a argentina na década de 80 e já é o maior recorde de público na história do cinema argentino. 

O diretor fez um filme político, apesar das ações da família Puccio não terem como alvo os grupos clandestinos perseguidos , torturados e mortos pela ditadura argentina (1976 a 1983). Mas a conivência é clara e está presente em todo o filme.
Bandeirosa, a cumplicidade das Forças Armadas só diminui já nos últimos suspiros do regime de força e em plena era Alfonsín. E só então é possível enquadrar , prender e julgar os responsáveis.

O ex-presidente Alfonsin discursa na TV e enche de desencanto e desprezo o rosto de Archímedes, interpretado com devoção por Guillermo Francella, que os brasileiros conhecem por um papel coadjuvante em outro filme portenho, O SEGREDO DE SEUS OLHOS. Os olhos verdes do ator absorvem a loucura e transmitem todo o poder do mal que nós, humanos, somos capazes de cultivar e nutrir. Perversidade acalentada sem culpa por um dos personagens mais sombrios do cinema contemporâneo.

O suspense é mantido até os instantes finais, quando os letreiros finalmente esclarecem o destino dos integrantes da família Puccio. Uma fotografia em tom pastel acompanha o ambiente soturno e as imagens de horror, testemunhadas apenas algumas poucas vezes pelo espectador. Junte-se a tudo isso uma trilha sonora vibrante e em desalinho completo com o ambiente de loucura em que todos estão imersos e temos um belo filme. 

Merecido Urso de Prata para melhor diretor, este ano, em Berlim.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

EM TRÊS ATOS, O CORPO, A MORTE E A DESPEDIDA

Escrever embalsama o passado.  

Acho a frase incrível, ainda mais pronunciada com todas as letras e sílabas por Nathalia Timberg.
Quem escreveu foi Simone de Beauvoir. Quem bebeu nas letras da francesa revolucionária foi outra guerreira, a cineasta Lucia Murat. 

Desta vez a diretora de filmes como QUE BOM TE VER VIVA e A MEMÓRIA QUE ME CONTAM, entre outros, trouxe a velhice e a morte para o palco do cinema. EM TRÊS ATOS, somos aprisionados voluntariamente pela poesia do roteiro, pela beleza da fotografia, pelo vigor da montagem e pela força da dança de Angel Vianna e Maria Alice Poppe. Setenta e seis minutos de pura imersão no corpo, na morte e na despedida.


Lucia Murat segue fazendo um trabalho político e engajado. A diferença é que em vez das feridas e cicatrizes dos anos de chumbo, mergulhamos no universo do envelhecimento e da finitude. Somos testemunhas da contemporaneidade dos textos de Simone de Beauvoir, escritora morta em 1986 que virou de cabeça pra baixo os conceitos do feminino com o livro O SEGUNDO SEXO, de 1946, e a própria concepção de velhice, descrita e analisada com maestria em A VELHICE, de 1970.

A cineasta carioca foi buscar em dois livros da francesa (A VELHICE e UMA MORTE MUITO DOCE) o mote de seu roteiro. Junto com Nathalia Timberg  e Andréa Beltrão, Lucia faz ficção como se fosse documentário. É que os textos de Simone, para os mais desavisados, soam como depoimentos nas vozes das duas atrizes que interpretam um único personagem - na velhice e na idade adulta.

Com muito silêncios interligados apenas pela inspirada coreografia de duas bailarinas de gerações diferentes, extraída do espetáculo de dança QUALQUER COISA A GENTE MUDA, de João Saldanha, o filme transborda emoção e provoca  memórias. E é instigante porque traz o velho para o centro de uma sociedade que ainda tem medo de olhar para a velhice e para a morte.

Preste atenção nas imagens do corpo em estado de velhice pura. Poucas vezes o super close esteve tão a serviço da sétima arte. Não deixe de ver, mesmo que ainda não tenha chegado aos 40.   


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

FILMES QUE FAZEM SUCESSO... MAS NÃO ME AGRADAM


Fiquei uma semana sem aparecer por aqui porque tenho uma enorme dificuldade para escrever sobre filmes que não me agradam. Filmes que não correspondem às expectativas que deposito nesse ou naquele diretor ou roteirista. Ou películas de origem desconhecida que poderiam enriquecer o meu universo cinematográfico, mas acabam provocando enfado ou irritação. 

Foi um pouco de tudo isso que senti ao assistir MISTRESS AMÉRICA e SEM FILHOS. 

O que dizer da nova empreitada do diretor novaiorquino Naum Bambach e de sua musa, a atriz Greta Gerwig? Juntos, eles emplacaram FRANCES HA, em 2012, e agora apostam em MISTRESS AMÉRICA e no talento histriônico de Greta. Antes, Bambach também dirigiu o intrigante LULA E A BALEIA e, recentemente, o simpático ENQUANTO SOMOS JOVENS.

O que não me agrada em Mistress América é a essência do personagem de Greta Gerwig. Faltou sutileza ou sobrou alguma outra intenção na construção de Brooke, uma balzáquia arrogante e egoísta, incapaz de ouvir qualquer outra pessoa que não o próprio ego. Atualíssimo, pero aburrido. 

O filme foi elogiado e o quarentão Naum Bambach é sempre comparado, por alguns críticos, a Woody Allen. Não creio que Woody se identifique com os excessos de uma crítica social que parece não chegar a lugar nenhum. Já LULA E A BALEIA, de 2005, deve ter enchido de orgulho o mestre novaiorquino. 

Bom, é ver pra crer, não é mesmo? 

E aproveito o espaço para fazer uma observação também pouco elogiosa ao argentino SEM FILHOS,de Ariel Winograd: uma comédia romântica que começa com diálogos muito perspicazes e aos poucos vai caindo no batidão de "pai divorciado, com uma filha que mora com ele, namora moça que não quer ter filhos e por isso inventa muitas mentirinhas pra não perder a amada".   

O filme continua em cartaz no Rio. Mas podia ser muito mais. Não perco a fé na cinematografia portenha. 





terça-feira, 1 de dezembro de 2015

CAMINHO DE VOLTA

Caminhos de ida ou de volta sempre me emocionam, sejam eles em linha reta, cheios de curvas ou recheados de labirintos. São caminhos. E quando iniciamos um processo de escolha sobre os atalhos que vamos seguir, algo muda radicalmente na maneira como passamos a enxergar e a vivenciar  as experiências que acompanham a decisão ou a falta dela. 

Processos de decisão filmados me atraem porque são uma presente para a plateia que, no escurinho do cinema, pode identificar em si mesmo uma empatia qualquer com o que se passa na telona. E isso é muito bom. 

Os dois personagens de CAMINHO DE VOLTA provocam essa empatia. Duas pessoas com personalidades e vivências muito diferentes, mas que são identificadas pelo espectador como "alguém como eu". Estamos diante de dois homens comuns, no melhor sentido da palavra, que abrem, diante das câmeras, suas dúvidas, frustrações e esperanças. 

O documentário de José Joffily e Pedro Rossi é uma empreitada familiar. Os dois diretores contaram, em entrevistas realizadas durante o lançamento do Festival "É Tudo Verdade" (abril deste ano), que muitos personagens foram pesquisados durante o período de pré - produção. Só que dois dos escolhidos estiveram o tempo todo diante deles: a sogra e o cunhado de Joffily. E não é que essa intimidade deu certo?

Esse é um filme que me atraiu pelo conteúdo. É claro que a direção de fotografia estabeleceu um critério de ação, mas há outros ingredientes de improvisação - como câmeras na mão de quem nunca gravou nada antes - que só fazem enriquecer a narrativa. 


Algumas cenas são tocantes e poderiam fazer parte de um romance ou de um estudo antropológico sobre o relacionamento entre seres humanos. O mais gostoso, porém, é que são pessoas prestes a tomar - ou não - a decisão mais importante de suas vidas naquele período de tempo em que o documentário é realizado. 

Nós somos as testemunhas e torcemos por elas.         

sábado, 28 de novembro de 2015

CHICO - UM ARTISTA BRASILEIRO

Parem as máquinas, suspendam as contra-indicações e encarem a real: assistir ao filme de Miguel Faria Jr é, antes de tudo, entregar-se à fruição do prazer. E nada atrapalha essa curtição. Dá pra tietar sim, sem culpa ou cobranças por algo mais polêmico ou inquiridor. 

Nãnaninãnã! O objetivo do diretor não era encostar Chico na parede e faze-lo confessar as causas profundas e inconscientes do final de seu casamento ou de seu afastamento da política partidária. A intenção do diretor, creio, foi deixar o amigo à vontade para discutir temas variados que recheiam uma história de vida intensa e constantemente questionada pelo próprio entrevistado. 


É a montagem de Diana Vasconcellos que transforma o espectador em cúmplice. Estão ali os Chicos que conhecemos, mas também um homem que indaga sobre sua produção no passado e tenta prever, com humor, o que poderá ser o seu futuro como compositor e escritor. 

Além do belo enquadramento do rosto de Chico, by Lauro Escorel, o que arrebata de primeira é o espetáculo musical que afaga todos os sentidos. Nada é óbvio. A escolha das músicas, nem sempre famosas, surpreende e emociona. É como se saíssemos da sala de cinema direto para a casa de shows. E a cada número um aplauso entusiasmado. 

As mulheres de Chico estão nas vozes de Martnália, Mônica Salmaso, Laura Garin, Adriana Calcanhoto e no tom cristalino de Clara, a neta de Chico. Mas, pausa para a emoção: o que é Carminho, a sensacional cantora portuguesa, interpretando "Sabiá"? Êxtase puro. 

E o que dizer das apresentações de Ney Matogrosso e Milton Nascimento - em dueto sublime com Carminho - e do próprio Chico? Melhor o silêncio, leitor. Assim, a experiência será ainda mais impactante e duradoura. 

Durante os 110 minutos de projeção compartilhamos as memórias, a imaginação, os questionamentos e as ponderações de Chico. Você pode até não concordar com algumas revisões do passado, mas vai gostar de ver, na telona, esse homem de 71 anos que revê sua caminhada com leveza, crítica e compaixão pelo menino que já foi. 

As presenças de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Bibi Ferreira - todos respirando juventude e exalando talento - enriquecem o filme e tornam ainda mais saboroso testemundar a trajetória única de Chico. 

São quase duas horas para viver e relembrar, junto com Chico Buarque de Holanda, o Brasil dos últimos 50 anos. Compre seu ingresso e se acomode na poltrona. É bom demais.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

AWAKE - A VIDA DE YOGANANDA

Alguns filmes têm a virtude de, terminados, provocar no espectador a vontade de saber mais. Aconteceu comigo depois de ver AWAKE - A VIDA DE YOGANANDA. 

Conhecia muito pouco sobre a vida desse iogue e guru que nasceu em 1893, na India, e morreu em 1952, em Los Angeles. E então,depois de assitir ao filme, cheguei em casa e descobri uma frase, do próprio Yogananda, que traduz a sensação que me acompanhou durante toda a projeção:


"A melhor coisa que você pode fazer 
para cultivar a verdadeira sabedoria 
é praticar a consciência 
de que o mundo é um sonho". 

Esse homem que saiu da India para levar sua mensagem à estranha terra do tio Sam, nos anos 20 do século passado, está ali, na tela, em raros fotogramas que o tornam real para o espectador, e na narração marcante do ator Anupam Kher, estrela de Bollywood, que dá voz a Yogananda,sempre na primeira pessoa. 

Sentado no escurinho, você é testemunha de uma viagem espiritual narrada pelo próprio guru, com depoimentos tocantes de muitos de seus discípulos, entre eles o ex-Beatle George Harrison, o músico Ravi Shankar e o pensador e escritor Deepak Chopra. 

Dirigido por  Paola de Fiori e Lisa Leeman, veteranas premiadas no Sundance Festival e indicadas ao Oscar por trabalhos anteriores, AWAKE é uma homenagem, mas também uma proposta de resgate dos ensinamentos do guru Yogananda que, entre outros, escreveu o livro " Autobiografia de um Yogue" (1946), clássico que inspirou milhares de seguidores em todo o mundo. 


Yogananda trouxe para o Ocidente os ensinamentos da meditação e da prática da Kriya Yoga. E nessa passagem de 15 anos pela América conheceu o preconceito racial, a intriga de antigos companheiros e a exaustão diante da tarefa que lhe foi incumbida pelo próprio mestre.

Com parcialidade e reverência, Paola e Lisa mostram o choque e o impacto da espiritualidade hindu na alma americana. E plantam, no espectador receptivo, a vontade de expandir fronteiras em busca de mais humanidade e paz para a alma. 

Boa pedida em tempos de radicalização e intolerância extremas.