sábado, 27 de fevereiro de 2016

O ABRAÇO DA SERPENTE

O início chamou a atenção logo de cara: um índio sarado, com bumbum trabalhado e corpo musculoso? Nos primeiros anos do século passado? Relevei. 

Mais tarde descobriria, ao ler algumas críticas sobre o ABRAÇO DA SERPENTE, que o novato ator Nilbio Torres rema todos os dias para cultivar seu campo de mandioca e banana na comunidade Santa Marta, em plena bacia amazônica, na fronteira da Colômbia com o Brasil. No filme, ele é Karamakate, curandeiro de uma etnia que acredita extinta e que recebe, com um intervalo de quarenta anos, duas visitas inesperadas de homens brancos. 


O preto e branco da floresta são os ingredientes mágicos dessa viagem aos mistérios, histórias, feridas e lendas de uma Amazônia pouco conhecida.O diretor colombiano Ciro Guerra se inspirou nos relatos de dois cientistas,  o antropólogo alemão Theodor Kroch Gunberg (1862-1924) e o botânico norte-americano Richards Evan Schultes (1915-2001) para escrever - com Jacques Toulemonde Vidal - e dirigir uma saga ao mesmo tempo política e espiritual. 

Política porque retrata, já nos anos 10 e 20 do século passado, a devastação da floresta e as torturas sofridas pelos índios - tanto no trabalho escravo da extração da borracha como sob o domínio de padres da igreja católica que tiram dos nativos o direito de falar o próprio idioma. O resultado da opressão são movimentos de fanatismo que se alastram no coração da floresta entre a submissão dos escravos da borracha e os gritos lancinantes de crianças que estão sob os cuidados da religião católica depois do massacre que dizimou milhares de índios. Horror. 

Espiritual porque transporta o espectador para um mundo estranho aos dias de hoje. Um xamã em comunhão absoluta com a natureza que resiste à cultura do homem branco, mas que ao longo da vida aprende a praticar a tolerância e a compaixão. Testemunhar sua intimidade com o ambiente que o cerca - tanto na juventude como na velhice - é um prazer que poucas vezes desfrutei no escurinho do cinema. Sublime.

A fotografia em preto e branco de David Gallego só faz adensar o poder da floresta e os conflitos narrados a partir dos relatos dos dois cientistas. É como se toda a narrativa se preparasse para uma única explosão colorida, um momento de beleza e introspecção que vai mexer com a sua sensibilidade. Chacoalhou a minha.  

O filme poderia ser um pouco menor (tem 125 minutos) ,com o corte de algumas sequências. Mas nada disso diminui o impacto de mergulhar na selva amazônica em busca de plantas que curam e fazem sonhar. 

domingo, 17 de janeiro de 2016

APOSTA NA BOA FÉ DOS MORTAIS

Um crítico de cinema americano escreveu que A GRANDE APOSTA ou THE BIG SHORT poderia ser definida como uma " American Horror Story". É, pode ser. Mas uma história de horror escrita com a dose perfeita de cinismo, crueldade, indignação e bom humor, coisa rara nos dias de hoje. 

O diretor Adam McKay deve ter sentado com o roteirista Charles Randolph para dar um tapa no roteiro e, depois de muitos rascunhos, chegou à seguinte conclusão, compartilhada com o parceiro: " pinga as  gotas roxas no seu chazinho enquanto eu misturo as ervas na minha vitamina e.... mandamos bala. Esse roteiro tem que ser rodado com os sentidos alterados pra tentar chegar minimamente perto da sacanagem que essa turma do dinheiro, o tal do Sistema, organizou contra todos nós em 2008".

E assim foi. Ou imagino que tenha sido construída essa adaptação do livro reportagem de Michael Lewis - A JOGADA DO SÉCULO - para o cinema.

O resultado é que nós, espectadores, recebemos a carga de adrenalina necessária para acompanhar uma sequência maluca de diálogos em "financês" que, aos poucos, vai fazendo todo o sentido. A montagem, sensacional, utiliza recursos sonoros e audiovisuais a explicar o que, afinal, foi essa tal bolha que estourou e deixou milhões de pessoas sem casa e sem emprego. Uma história contada com a ousadia necessária para não permitir que pairem dúvidas sobre quem são os bandidos desse esquema fraudulento que até hoje não condenou sequer um banqueiro celebridade. 

Não vou esquecer a explicação do chef Anthony Bourdain para o que vêm a ser os tais bônus ou papéis que enriqueceram investidores mundo afora: um suculento refogado de cortes de peixe recusados para compor o prato principal. Mistura-se tudo no panelão e entorna-se goela abaixo do trouxa que acreditou na solidez do mercado imobiliário americano e internacional. 




Um elenco de estrelas conta essa história de carochinha das hipotecas com brilho singular. Gosto de Christian Bale como o investidor bizarro e antissocial que começa a apostar contra o mercado. Steve Carrell compõe com o talento habitual o cara angustiado com o horror que se aproxima, mas que também não quer se dar mal. Brad Pitt faz o gênero "good guy arrependido" que sem deixar o bom mocismo de lado, entra no jogo para enriquecer dois jovens discípulos e ainda colocar mais unzinho no bolso.

A montagem de Hank Corwin é tão ágil quanto os diálogos pra leigo nenhum entender. São falas que plantam gradualmente, em nossos cérebros fatigados, a semente da náusea. Um enjôo nauseabundo com gosto de atraso - quase oito anos depois. A diferença é que  em 2016 sabemos que praticamente todos os bandidos, além de se safarem, ainda receberam um generoso socorro do Sistema. 

Vai mais um chazinho? Ou prefere a vitamina? 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

MAKING A MURDERER, UM DESAFIO PARA O BOM SENSO


Por esses dias um amigo querido, Ricardo Soares, usou a palavra "instigante" para definir um filme que o agradou e que ainda não vi, THE LOBSTER. Eu empregaria a mesma palavra em relação a MAKING A MURDERER, a impressionante série em dez episódios exibida pela Netflix. Uma porrada no estômago, um tapa na cara, um chute no traseiro, todas essas sensações acumulam-se durante as dez horas de exibição. 


MAKING A MURDERER coloca o espectador diante de um desafio: acompanhar uma história que teve um começo injusto, uma metade aparentemente resolvida e um fim ainda por ser construído, apesar do triste prognóstico atual. 

As diretoras Moira Demos e Laura Ricciardi botaram pra quebrar. Dedicaram dez anos de suas vidas ao caso de Steven Avery, um jovem injustamente preso, durante 18 anos, acusado de estupro, libertado e em seguida novamente preso e condenado a prisão perpétua por homicídio. Um trabalho impressionante de registros, entrevistas, filmagens, áudios gravados e uma edição final que mostra que a "montagem" da realidade pode servir a várias interpretações - para o bem e para o mal. 

Poucos roteiristas imaginariam uma história tão intrincada e complexa como a que se revira nervosamente diante dos nossos olhos. Faz o Sistema, sim, os tais sistemas judiciário e policial parecerem uma quadrilha de malfeitores empenhados em não permitir que o bem aflore, sob nenhuma hipótese.


Acompanhar as versões da história de Steven Avery me lembrou a disputa de opiniões que se desenrola nas redes públicas. A maioria não quer ouvir o que o outro poderia ter a dizer ou mostrar. O objetivo parece ser apenas o de marcar um território invisível em que os dois lados atiram pedras e palavras.

Muito mais pesado, MAKING A MURDERER traz um sistema cruel que busca a condenação, raramente a absolvição. Um universo jurídico que alimenta a vingança e manipula o conservadorismo moral e emocional dos habitantes de uma cidadezinha no interior do Wisconsin, nos Estados Unidos.  


Como brasileira que desconfia do comportamento da nossa polícia, um fato me chamou a atenção na série: nas pequenas cidades norte-americanas, acusar policiais de corrupção - distorcer a cena de um crime, plantar provas, etc -  pode provocar indignação e revolta na população que ainda acredita que os chamados defensores da lei são os "mocinhos" da história. O lado podre tem essa consciência e trabalha para ativar, nas pessoas, essa sensação de ultraje. Incrível como entre nós a rotina da maracutaia policial não impacta e nem impressiona.

MAKING A MURDERER é o século 21 mostrando que a cegueira moral é tão destrutiva quanto uma arma letal apontada para as nossas cabeças. 
   

sábado, 9 de janeiro de 2016

SPOTLIGHT : PEDOFILIA E INVESTIGAÇÃO

Feliz ano novo! Que 2016 seja um ano criativo e produtivo para todos.

Gosto de entrar no escurinho e, na hora de encarar novamente a luz do dia, ter a sensação de que o filme foi estimulante e me deixou com vontade de sair do cinema e sorrir diante do fato de que sim, continuamos por aqui, vivos, atentos e cercados de pessoas talentosas que nos encantam com suas criações.

SPOTLIGHT, de Thomas Mc Carthy, exerce esse poder. E mais: faz você se endireitar na cadeira para não perder os detalhes do ótimo roteiro escrito por Josh Singer e pelo próprio diretor. 


O filme toca especialmente os jornalistas.  Talvez ainda mais os da velha guarda, como eu. Se mais não fosse, apenas pelo raro prazer de testemunhar e de participar, ainda que na ficção, de um trabalho de investigação realizado em equipe, sem frescuras ou ataques de estrelismo de seus integrantes. Um fato para ser comemorado em tempos de notícias fabricadas, requentadas e não checadas. Um tempo em que a internet já se configurava como uma ameaça aos jornais impressos, embora não de forma avassaladora, como constataríamos depois.  

O tema é especialmente angustiante: o abuso sexual de crianças em dezenas de paróquias de Boston, Estados Unidos, ao longo de muitas décadas. Pedofilia no seio da Igreja e, por isso mesmo, pecado protegido pela instituição e pela alta sociedade bostoniana - católica de formação e hipócrita no acobertamento de crimes cometidos por padres em pleno exercício de suas funções educadoras ou litúrgicas. 

Atores e repórteres durante o Festival de Toronto, no Canadá.
O time de atores enche os olhos do espectador. Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams, Brian d'Arcy James e Liev Schreiber quase nos convencem de que são mesmo editores e jornalistas investigativos do caderno Spotlight, do jornal Boston Globe. A postura, a dedicação e o trabalho duro de apuração dos fatos estão ali, sem firulas e sem glamur. E Stanley Tucci, na pele de um advogado solitário e abnegado, deixa claro porque é um dos melhores  - e menos reconhecidos - atores de sua geração. 

A impaciência, a pressão, a decepção, o medo, a insistência, a indignação, a ansiedade,  todas essas sensações acompanham os personagens e a plateia durante os 128 minutos de projeção. Trata-se de um filme sobre o processo de produção e construção de uma história de múltiplos abusos sexuais que abalou o mundo e provocou várias mudanças, talvez menos do que as necessárias,  na cúpula da igreja católica. É essa a história que Thomas Mc Carthy quer contar.      

Ninguém é herói, o dramalhão não tem vez e os depoimentos das poucas vítimas funcionam como um reforço para o conjunto de denúncias que serão publicadas. Um único padre acusado revela, entre outras frases impactantes, que também foi abusado na infância. Pano rápido e pausa para o olhar incrédulo da repórter.

Jornalista investiga. Muitas vezes o trabalho é intelectual. Outras tantas o serviço pode ser entediante porque exige do profissional humildade para correr atrás da informação necessária. O que pode significar dias e dias de telefonemas e pesquisas em arquivos, relatórios e formulários. Até de repente descobrir que........ Bingo, os dados estão ali e confirmam as hipóteses levantadas até aquele momento. Alegria imensurável diante da constatação. A equipe comemora.

Todo jovem jornalista deveria assistir a SPOTLIGHT. Nem que seja pra comentar com amigos depois da sessão: "como eram trouxas aqueles repórteres. Todos se ajudavam e só não queriam que o concorrente desse a matéria antes deles. Mas e o melhor do time, não era premiado?". 

Prêmio era sair e tomar um porre gostoso com os amigos. 
E depois ganhar um Pulitzer e sair pra tomar mais um porre.



  

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

QUANDO O SABOR DA VIDA PEGA FOGO!


Demorei para querer escrever sobre PEGANDO FOGO (Burnt), a saga culinária do americano John Welles. Foi preciso assistir ao japonês SABOR DA VIDA para que tudo adquirisse um outro sentido em matéria de sensibilidade, se é que posso definir assim as diferentes emoções provocadas pelos dois filmes.

A receita de BURNT (PEGANDO FOGO)  é manjada. Nos cinco primeiro minutos de projeção já sabemos que se trata de um " filme redenção", uma jornada com pit stop no purgatório para que nosso herói Adam Jones (Bradley Cooper) consiga redimir-se das besteiras e mágoas que espalhou ao longo de sua atormentada trajetória. 

Tenho uma amiga chef, a querida Fernanda Valdivia, e assim que saí do cinema fiz a pergunta óbvia: então é assim mesmo? Tirania e crueldade em potências infinitas? Gordon Ramsay fez escola ou essa hierarquia maluca sempre incorporou a loucura dos chamados estrelados? 

Pois Fernandinha garante que sim, a neura é real.Mais do que deveria ser, segundo ela, mas quem ama e tem tesão pela profissão sabe exatamente o que sente e como vive o perturbado chef Adam. Palavras de chef que ainda vou reproduzir aqui no blog. Aguardem.

SABOR DA VIDA, da diretora Naomi Kawase, também mexe com o paladar. E junto com o sabor aguça a audição, a visão e o discernimento. Uma aula de humildade. 


Delicadeza e respeito estão presentes em todos os diálogos. Tokue (Kirin Kiki), aos 76 anos, domina a arte de preparar uma pasta de feijão azuki inesquecível. Seu chefe, Sentaro (Masatoshi Nagase), tem uma história de vida triste e o sorriso não faz parte de seu dia a dia. Ele vende dorayakis, panquequinhas, recheadas com uma pasta de feijão comprada pronta e sem nenhum brilho. Um quitute razoável, mas bem distante da perfeição.

Só podia mesmo ser um filme japonês, adaptado do romance AN, de Durian Sugekawa, publicado em 2013. A pasta de feijão vermelho doce é conhecida como AN.

O espectador quase sente o cheiro do feijão que cozinha no panelão. E a reverência de Tokue diante do alimento é emocionante porque traz à tona uma devoção, ou paixão, se preferirem, que, martelados pela rotina, muitas vezes deixamos de colocar em prática nas atividades que exercemos. 

Os pequenos detalhes  são importantes. O passar do tempo chega, até nós, pelas cores das árvores, pela presença - ou não - das flores, pelo ritmo dos ventos e pelo calor ou frio das estações do ano. Mas é a lembrança do preconceito que humaniza ainda mais as relações em SABOR DA VIDA. Ignorância que existe e ainda é poderosa em pleno Japão do século 21. 

A descoberta de Sentaro e da adolescente Wakana (Kyara Uchida) transforma a vida de ambos. E nós, espectadores, ficamos morrendo de vontade de conhecer e aprender vários segredos com Tokue. Melodrama? Talvez. Mas principalmente um drama bem humorado e com belas imagens típicas - das cerejeiras em flor às orquídeas que passeiam diante de nossos olhos na telona.

PEGANDO FOGO bem que podia pegar emprestados o respeito e a delicadeza de SABOR DA VIDA. Faria um bem danado ao angustiado Adam Jones. Já Sentaro, o anti-herói de SABOR DA VIDA, seria um homem mais feliz se aprendesse com o personagem de Omar Sy, de PEGANDO FOGO, só um pouquinho sobre o ódio e a arte da vingança.

Pausa para risadas politicamente incorretas.

Pairando acima do bem e do mal, com sua colher de pau, reinaria a senhora Tokue, compreensiva com os apaixonados e impaciente com os conformados. Dos dois filmes.



  
    


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O CLÃ

Entrar na sala de projeção e assistir às primeiras cenas de O CLÃ é comprometer-se com alguns sentimentos desconfortáveis. Revolta e indignação, por exemplo. Você fica pasmo diante de tanta frieza e incrédulo com algumas consequências letais da psicopatia humana. Nada é por acaso. Carinho e manipulação podem estar umbilicalmente interligados. Forever.

Pablo Trapero já disse a que veio faz algum tempo. Em seu mais recente ABUTRES escancarou a máfia dos seguros automotivos. Agora produz um suspense baseado em fatos reais. O caso Puccio escandalizou a argentina na década de 80 e já é o maior recorde de público na história do cinema argentino. 

O diretor fez um filme político, apesar das ações da família Puccio não terem como alvo os grupos clandestinos perseguidos , torturados e mortos pela ditadura argentina (1976 a 1983). Mas a conivência é clara e está presente em todo o filme.
Bandeirosa, a cumplicidade das Forças Armadas só diminui já nos últimos suspiros do regime de força e em plena era Alfonsín. E só então é possível enquadrar , prender e julgar os responsáveis.

O ex-presidente Alfonsin discursa na TV e enche de desencanto e desprezo o rosto de Archímedes, interpretado com devoção por Guillermo Francella, que os brasileiros conhecem por um papel coadjuvante em outro filme portenho, O SEGREDO DE SEUS OLHOS. Os olhos verdes do ator absorvem a loucura e transmitem todo o poder do mal que nós, humanos, somos capazes de cultivar e nutrir. Perversidade acalentada sem culpa por um dos personagens mais sombrios do cinema contemporâneo.

O suspense é mantido até os instantes finais, quando os letreiros finalmente esclarecem o destino dos integrantes da família Puccio. Uma fotografia em tom pastel acompanha o ambiente soturno e as imagens de horror, testemunhadas apenas algumas poucas vezes pelo espectador. Junte-se a tudo isso uma trilha sonora vibrante e em desalinho completo com o ambiente de loucura em que todos estão imersos e temos um belo filme. 

Merecido Urso de Prata para melhor diretor, este ano, em Berlim.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

EM TRÊS ATOS, O CORPO, A MORTE E A DESPEDIDA

Escrever embalsama o passado.  

Acho a frase incrível, ainda mais pronunciada com todas as letras e sílabas por Nathalia Timberg.
Quem escreveu foi Simone de Beauvoir. Quem bebeu nas letras da francesa revolucionária foi outra guerreira, a cineasta Lucia Murat. 

Desta vez a diretora de filmes como QUE BOM TE VER VIVA e A MEMÓRIA QUE ME CONTAM, entre outros, trouxe a velhice e a morte para o palco do cinema. EM TRÊS ATOS, somos aprisionados voluntariamente pela poesia do roteiro, pela beleza da fotografia, pelo vigor da montagem e pela força da dança de Angel Vianna e Maria Alice Poppe. Setenta e seis minutos de pura imersão no corpo, na morte e na despedida.


Lucia Murat segue fazendo um trabalho político e engajado. A diferença é que em vez das feridas e cicatrizes dos anos de chumbo, mergulhamos no universo do envelhecimento e da finitude. Somos testemunhas da contemporaneidade dos textos de Simone de Beauvoir, escritora morta em 1986 que virou de cabeça pra baixo os conceitos do feminino com o livro O SEGUNDO SEXO, de 1946, e a própria concepção de velhice, descrita e analisada com maestria em A VELHICE, de 1970.

A cineasta carioca foi buscar em dois livros da francesa (A VELHICE e UMA MORTE MUITO DOCE) o mote de seu roteiro. Junto com Nathalia Timberg  e Andréa Beltrão, Lucia faz ficção como se fosse documentário. É que os textos de Simone, para os mais desavisados, soam como depoimentos nas vozes das duas atrizes que interpretam um único personagem - na velhice e na idade adulta.

Com muito silêncios interligados apenas pela inspirada coreografia de duas bailarinas de gerações diferentes, extraída do espetáculo de dança QUALQUER COISA A GENTE MUDA, de João Saldanha, o filme transborda emoção e provoca  memórias. E é instigante porque traz o velho para o centro de uma sociedade que ainda tem medo de olhar para a velhice e para a morte.

Preste atenção nas imagens do corpo em estado de velhice pura. Poucas vezes o super close esteve tão a serviço da sétima arte. Não deixe de ver, mesmo que ainda não tenha chegado aos 40.